Valentina, a corredora que não é beija-flor

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Por Diego Toscano

Valentina Gomes tem 48 anos. Ao perder uma grande amiga para o câncer, começar a correr foi um jeito de impedir que a depressão fizesse dela, a sua moradia. A jornalista entrou em contato com o Corre10 para contar a sua primeira meia maratona da vida, a do Rio, em janeiro de 2011. Simplesmente espetacular. Decidimos transcrever, na íntegra, a sua história:

Estava frio, muito frio – especialmente para os meus padrões nordestinos. Não bastasse isto, caía uma chuva fina, mas constante. Ali, na largada da corrida, eu, e mais milhares de pessoas, oscilávamos entre o bater de queixos dos desaquecidos ou o saltitar inquieto dos excitados. Noite mal dormida, parecia véspera de vestibular. Café da manhã improvisado e o medo recôndito de não ser capaz de chegar ao fim.

Viagem programada há meses, quase em outra encarnação. Quando a planejei, era capaz de correr 40 quilômetros por semana com facilidade. Desde então, uma lesão me imobilizou por mais de nove meses. Inscrição realizada quando morava em outra cidade, tinha um emprego, outra rotina, outros amigos, enfim, tinha outra vida. Hoje, no dia de enfrentar os 21 Km da Meia Maratona Internacional do Rio de Janeiro, no entanto, só sinto falta da minha mãe, que perdi há poucos meses. O resto é só lembrança.

O primeiro impulso para participar da corrida teve por motivação o desafio, a companhia de um irmão, a ideia da farra, enfim. A sucessão de acontecimentos foi emprestando novos significados e aprofundando os compromissos com aquilo que, no ponto de partida, era só diversão.

A contusão me fez perseguir a cura. Precisava ficar boa a tempo de me preparar para a corrida. Esta etapa foi uma maratona inteira. Anti-inflamatórios, fisioterapeutas, ortopedistas, especialistas em pisada, academias etc. Não precisa dizer que fiz mandingas, isto e aquilo, na busca de um pé apto a correr. Fiz até um acordo – sei lá com quem – de fazer uma tatuagem, se conseguisse me recuperar e concluir a corrida.

A súbita partida da minha mãe, de alguma maneira, acrescentou gravidade ao impulso inicial. Eu não mais iria correr por mim. Eu precisava correr para/por ela. Por quê? Não faço ideia. Talvez, alguma culpa por não ter conseguido ajudá-la a superar a doença. Ou por não ter contribuído mais para que tivesse uma vida melhor. Sei lá.

Ocorreu-me, agora, que certo “pensamento mágico” me fez crer que, de alguma maneira, aferrando-me ao sentimento de oferecer-lhe o “meu sacrifício”, conseguiria aproximar-me dela novamente.

Foi assim que, um mês e meio depois de ter retornado à prática de alguma atividade física, fui parar ali. Enregelada, sonolenta e, ainda assim, portadora de uma felicidade imprecisa.

Para driblar o frio e a chuva, compramos – eu e meu irmão – duas precárias capas de plástico, certamente pagamos o preço da necessidade e não do produto em si.

Embora tivesse 21 km no horizonte, evitei beber água antes de largarmos – só dispúnhamos de banheiros químicos. E eles são excelentes inibidores renais e de esfíncter.

A mistura de pessoas e sotaques era bem divertida. Conterrâneos eram facilmente ouvidos na multidão. Aqui, acolá, um carioca irreverente fantasiado de super-herói. Pessoas de todas as idades, desde que não fossem crianças. Nada de saradões ou saradonas. Os corredores amadores não exibem corpos esculturais. São pessoas normais, nem magras demais, nem gordas demais. Os que os distinguem, além de tudo o mais? Arrisco: uma panturrilha levemente mais trabalhada e a satisfação, estampada na testa, por está ali.

Dada a partida, a multidão se arrastou lenta, comprimida. Mais parecia um bloco de Carnaval subindo ladeiras em Olinda. Uns dois quilômetros adiante, os espaços se expandem. Cada qual encontra o seu ritmo e o seu metro quadrado. Quem desvia os olhos do colega da frente, e vira, à direita, a cabeça, tem o privilégio de uma bela paisagem. É o mar dos cariocas, o marzão que de lá olha pra cá, vendo-nos passar.

O tempo corre, as curvas se insinuam, os túneis escurecem, as diferentes paisagens se alternam. O aceno do menino, o grito encorajador da senhora, o olhar intrigado do turista anglo-saxão. Os copos de água que saciam e depois formam tapetes no chão. Um corredor muito educado entrega o copo vazio para alguém que assiste à passagem da turba e pede: podes jogar no lixo para mim? Ao que ouve: claro. Belo exemplo de civilidade! Mútuo.

Há espaço para tudo em uma corrida. Até para aquele corredor que exala álcool por todos os poros. Ufa, prendo a respiração até ele me ultrapassar. Há os exibidos de todos os matizes, estranhamente trajados, ou pouco trajados. Dos calados e compenetrados, pode-se mesmo adivinhar que, por trás de tanta seriedade, há uma tragédia a ser superada, gota a gota de suor.

Quilômetro 17. Restam só quatro. Poderia comemorar, que nada! Neste momento do percurso os joelhos doem e o corpo dá sinais de cansaço. Perseverar. Vamos aos pequenos truques. Começa intenso processo de negociação. A mente, músculos e ossos sentam à mesa. “Vamos lá, só mais um quilometrozinho e… pronto… pode entregar os pontos”. Balela, logo adiante, será refeita a base do contrato.

Tudo bem, nos últimos dois mil metros já não há dor. A vontade é tão soberana que cala todos os oponentes. Estou sorrindo e nem sei o por quê. Vejo pessoas mais velhas, aparentemente menos em forma que eu, já exibindo, felizes, suas medalhas no peito. Nesta corrida, não há pódio. A vitória é cruzar a linha de chegada. É não desistir de tentar. Calcanhar, calcanhar.

Cheguei. Molhada, gelada e aliviada. Sinto-me bem e disposta a largar novamente. Já.

A chuva intensifica. O frio e o vento castigam. Quanto tempo levará até chegar a algum lugar seco e aquecido? Por quanto tempo durará o prazer de uma conquista? Sim, é difícil vencer o quilômetro 17. Estou na luta, em plena negociação. Chego lá!

Por que corro? Porque não sou beija-flor. Se o fosse, não tenham dúvidasvoaria.

Valentina Gomes.

E você? Tem alguma história marcante com as corridas? Mande pra gente! historias@corre10.com.br

 

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